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Alegoria, desierarquização, abertura: Terceiro Corpo no “Movimentos de solo”

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 28/01/2024 às 16:53:18

“Aqui, o terceiro mundo

Pede a benção e vai dormir

Entre cascatas, palmeiras

Araçás e bananeiras

Ao canto da juriti”

Alegorias tropicais

Ouvimos a área para soprano das Bachianas Brasileiras nº5, de Villa-Lobos e um corpo de mulher está rodeado por signos plásticos que remetem à tropicalidade. Trata-se de infláveis plásticos em forma de bananas, coqueiros e boias para piscina/mar. O primeiro quadro formado na percepção do espectador, portanto funciona como aquelas colagens tropicalistas da passagem dos anos 60 para os 70: uma retomada antropofágica do Modernismo da primeira metade do século XX.

A composição musical de Villa-Lobos, dos anos 1930, traz consigo o impulso Modernista apenas apontado na década anterior, quando o maestro participou da Semana de Arte Moderna, subindo ao palco do Municipal de São Paulo de casaca e chinelo, mas com composições completamente inseridas no padrão europeu. O que importa, também, aqui, é a postura de diva a que remetemos à performer em cena. Ela está com uma grande folha no alto da cabeça, que pode funcionar tanto como um penacho indígena, quanto como uma peineta espanhola, quanto uma pluma europeia numa peruca aristocrática. Nosso processo histórico está aí: a carnavalização dos códigos do colonizador.

O espectador sabe que esse corpo feminino não é o de uma diva europeia, mas um corpo há séculos estuprado pela colonização. Sabe, também, que aqueles elementos tropicais muitas vezes foram utilizados para silenciar os horrores coloniais com uma ideia de povo brasileiro alegre, que faz carnaval mesmo sob a pobreza. Sabe que o material plástico é agressivo à natureza e, por isso, ele materializa, em cena, nosso papel de objeto aos olhos dos que contaram a História.

A partir daí, Mariana Pimentel vai se desmontando das alegorias tropicais, aproveitando a disposição em arquibancada da plateia para desenvolver uma movimentação no plano baixo. O pé-de-pato de glitter rosa contribui para priorizar um deslocamento no chão e o grande peixe inflável, porém desinflado, jaz como um cadáver aos pés do espectador.

As “poças” de acrílico furta-cor no chão, uma sobre a outra, transparentes, lembram as nuvens da aquarela "Estrela da Manhã", que Tomás Santa Rosa fez para o livro de Manuel Bandeira em 1936. Santa Rosa “pinga” nuvens como se fossem gotas que caíram no chão, onde há um corpo nu de mulher, com uma estrela da manhã “bem localizada”. Aqui, na cena, as poças irisadas são como gotas de lágrimas que a mulher indígena carrega com as próprias mãos, colocando sob o foco de luz para que esse choro brilhe e ofusque os olhos do espectador.

As poças parecem ser do mesmo material das pastilhas de lantejoula bordadas na camisa do final da cena. As “escamas” que formam as pastilhas se conectam tanto com as já citadas “lágrimas” no chão, quanto com o cadáver do peixe “desinflado”.

Desierarquização dos materiais

A dança se dá pela maneira menos esperada, portanto menos óbvia. É uma dança que se revela discretamente na interlocução com os elementos de cenário, figurino, iluminação e som. Durante certo tempo, o espectador pode até experimentar um incômodo por não ver uma dança mais evidenciada. Aos poucos, vai se deixando penetrar por uma relação que derruba a hierarquia dos materiais: eles não estão ali para dar um suporte escravizado à estrela em cena.

Esse deslocamento do sujeito do discurso nos permite um contato com a criação menos baseada na transmissão da Ideia de um “eu” e mais materializada no processo de fabricação dos materiais escolhidos. Não vemos apenas uma bananeira, uma rede, ou uma chapa plástica; podemos ver o processo de trabalho humano imbricado na produção desses objetos: há outras pessoas implícitas na cena e só nos é possível lembrar delas porque a atriz-bailarina-performer saiu do centro.

Por outro lado, a atitude desierarquizadora também pode levar à problematização da própria cena. Isso se dá pela presença de um corpo de técnico na penumbra. Há um outro corpo ali, a ideia de solo está problematizada. É interessante que isso aconteça porque a própria temática do corpo “terceiro” é problematizada, posto que, para o espectador, passa a haver um corpo protagonista (estético, conceitual) e um corpo técnico que dá suporte (ocultado, porém presente fisicamente).

Esse corpo contrarregra-iluminador-sonoplasta deixa de ser um operador dentro de uma cabine e vai para o espaço cênico. Ainda que esteja vestido de preto na penumbra, ele se transforma em uma sobra, um negativo do corpo-artista. Me parece que há um trabalho a ser desenvolvido nesse território.

Abertura de processo

Tudo o que foi interpretado aqui vem do material em cena, nessa apresentação do sábado, 27 de janeiro de 2024. A performance parece estar no início do processo. A estrutura narrativa é a de cenas que foram criadas independentes umas das outras e justapostas em algum momento do processo de “montagem”. Parece haver muita potência criativa e, daí, é possível prever que a cena ainda será bastante transformada e desenvolvida.

As redes penduradas, por exemplo, são elementos espaciais que atraem muita atenção do espectador desde a entrada na sala. Uma delas é utilizada como figurino numa rápida passagem, mas ainda não foram trabalhadas à exaustão, assim como os demais materiais. O processo criativo que se apresenta até aqui indica uma proposta de que o objeto fale por si só, de que o corpo vivo de Pimentel descubra o que cada um dos materiais pode liberar como discurso.

Nesse estágio larvário o que há é muito material que dá suporte à criação e, pela atitude não hierarquizada entre os elementos, acredito que a dança virá cada vez com mais força, sabendo “devorar” os elementos cênicos e encontrar novos movimentos nas articulações e músculos.

A abertura de processo é um acontecimento importante e potente para o espectador e para o artista da cena. A instabilidade é fundamental. O material básico da arte não é a informação ou o raciocínio logico. Ela pode contê-los, mas sua base é aquilo que não existe. Sem a arte não teríamos utopias, não projetaríamos horizontes longínquos, não transformaríamos o mundo porque não teríamos devaneios de viver coisas, até então, impossíveis. Esse corpo vulnerável da abertura de processo pede do espectador um esforço, um trabalho.

Recorrentemente ouvimos reclamações, por parte do público de teatro, de não ter entendido, de não saber do que estavam falando. O público popular, muitas vezes, se coloca em uma posição mais aberta a receber algo “louco” porque está menos acostumado a ir a salas de espetáculos. O público burguês é mais exigente dentro das regras que ele entende que são básicas para um espetáculo, e isso inclui “entender” o que que a obra quer dizer. É necessário voltar a acreditar na arte como criadora de coisas impossíveis e, para isso, é preciso que o espectador esteja aberto a não entender o que o “autor” está passando como mensagem. É um esforço, às vezes uma irritação, mas é preciso reencontrar o prazer de não entender, mas de fazer suas conexões em suas cavidades biográficas e encontrar sentidos para aquelas formas em movimento.

Nesse sentido, é um alento o evento “Movimentos de solos” ter sido empreendido no Teatro Domingos Oliveira. Há tantos artistas explodindo em criações cênicas pelo país. Nesse caso específico, há um recorte nos solos de mulheres e elas ocupam um teatro que leva o nome de alguém cuja obra esteve sempre relacionada a “todas as mulheres do mundo”. Longa vida a esses processos abertos e que venham muitas outras aberturas.

Terceiro

Termino pelo começo. Comecei, antes de entrar no espaço da performance, me perguntando a respeito do “terceiro” corpo anunciado no título. “Será um corpo além do masculino ou feminino? Do brasileiro ou gringo, colonizador/colonizado, cultural/natural?”. Que corpo é esse que quer quebrar nosso raciocínio binário quase incontornável?

Visto que o impacto da plástica da cena de abertura me levou a pensar na Tropicália, o corpo se revela terceiro-mundista. lembro o plano econômico e social do contexto da ditadura em confronto com a uberização atual, lembro nosso vizinho hermano “extremo-direito” e a possibilidade “dela” voltar ao Brasil nas próximas eleições. O que é ser terceiro mundo agora? Naquele momento, o ideal do homem trabalhador empreendedor ascendia, em contraposição ao guerrilheiro e ao hippie. Daí o resgate da obra modernista Macunaíma no cinema: a mestiçagem misturada à guerrilha urbana.

O terceiro corpo é o território. Espaço em si. Modo de produção de conhecimento, ele é língua e território. São séculos de distorção e apagamento dos códigos das culturas originárias, medida estratégica colonizadora que acarreta a ruptura da inteligibilidade de nossos “eus” atuais com os “eus” ancestrais. Aos poucos, vamos descreditando o que não é imediatamente compreensível e, por isso, não é estranho que esse corpo seja descreditado e deslegitimado.

Em Terceiro Corpo, as várias linguagens justapostas em cena são uma materialidade desse corpo terceiro-mundista. Quando não se está legitimado em nenhuma linguagem, o corpo vai avançando por várias.

“Aqui, meu pânico e glória

Aqui, meu laço e cadeia

Conheço bem minha história

Começa na lua cheia

E termina antes do fim”

(Os dois trechos citados são do jovem poeta Torquato Neto, “ido” num retorno de Saturno)

Ficha Técnica

Direção, criação, interpretação e produção: Mariana Pimentel

Direção e desenho de luz: Karina Figueiredo

Direção de movimento e acompanhamento dramatúrgico: Alexandre Américo

Trilha sonora original: Tiago Portella Otto

Figurino: Lucas Koester e Natália Borges / Urd Atelier

Assistentes de costura Urd Atelier: Carolina Glasner, Nicoli Gomes e Tarsis Melo

Cenografia: Natália Borges e Mariana Pimentel

Visualidades e captação de imagem de processo: Pedro Vitu Queiroz

Apoio na pesquisa: Aliã Wamiri Guajajara e Nathan Gomes

Montagem de luz: Boy Jorge

Operação de luz: Karina Figueredo, Cris Ferreira, Maria Hermeto e Tayná Maciel

Operação e montagem de som: Julio Coelho, Cynthia Esperança e Gabi Jung

Cenotecnia: Uirá Clemente

Preparação corporal e fisioterapia: Núbia Barbosa e Mana Lobato

Apoio na produção e visagismo: Priscila Maia, Mana Lobato e Marília Rameh

Apoio e doação de materiais para o figurino: Almir França e projeto Ecomoda

Vídeo: Mariana Bley

Produção: Dos Voos (Mariana Pimentel e Priscilla Maia)


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